Escrito por Rafael Gandara D’Amico e Sergio Ruy David Polimeno Valente
No Brasil, os últimos anos do século XX, seguindo a evolução da doutrina jurídica na proposição e reconhecimento de direitos e garantias fundamentais, têm sido marcados por um notório desenvolvimento dos mecanismos práticos voltados para a concretização dos direitos de cidadania por meio de demandas ajuizadas no Poder Judiciário. No que se relaciona ao direito processual, instrumento de que se vale o cidadão para a exigência de direitos, boa parte da doutrina aponta que estamos caminhando para um processo de massa e de resultados, ou seja, que inclui amplos setores da população, preocupado não só com acesso dos antes excluídos aos serviços da Justiça, como também com o acesso de todos a decisões justas, garantidoras, a quem de direito, de um determinado bem da vida, e em tempo razoável. Lesões ou ameaças a direitos, conforme previsão do inciso XXXV da Constituição Federal, não devem ficar sem a devida apreciação por parte do Judiciário.
Assim sendo, entre outros casos, inúmeras demandas têm sido ajuizadas junto aos tribunais pleiteando a garantia, positivada na Constituição, do direito à saúde, utilizando, entre outros mecanismos processuais, o mandado de segurança. São casos nos quais pessoas que necessitam de medicamentos ou tratamentos médicos muito caros e que, não podendo custeá-los, reclamam uma prestação positiva por parte do Estado. Este forneceria o medicamento de modo a concretizar a garantia inafastável do direito à saúde, direito líquido e certo e que, portanto, pode ser pleiteado via mandado de segurança.
O caso mencionado deixa transparecer alguns de conflitos de ordem jurídica, econômica e política. Em que medida os direitos previstos na Constituição têm força normativa real ou poderiam ser, displicentemente, considerados como meras “normas programáticas” não aplicáveis? Como fica o relacionamento do setor público com os grupos privados que exploram comercialmente os medicamentos e qual o impacto econômico da concessão do remédio por parte do Estado? Quando o Poder Judiciário determina que as autoridades competentes dêem o remédio à pessoa que dele necessita ocorre uma quebra no princípio da tripartição de poderes?
O presente artigo visa a analisar as teses conflitantes com relação à matéria, que cada vez mais permeiam as demandas jurídicas e ocupam os tribunais. E, especificamente, refutar criticamente o raciocínio de que a concretização, por meio de ordens judiciais individuais, dos direitos humanos e sociais previstos na Constituição poderia ferir o princípio da repartição de poderes, ao criar custos para o Executivo não previstos e supostamente não comportados nos orçamentos dos entes estatais. Demonstrar-se-á que o Poder Executivo possui meios hábeis e institucionalizados para lidar com tais situações, como já fez em determindados momentos da história recente, e que o conflito entre o Poder Judiciário e o Executivo, em muitos casos, não apenas não prejudica como é essencial para o bom funcionamento da separação de Poderes e, conseqüentemente, para o desenvolvimento institucional do país.
“Super remédios” e políticas públicas
Recentemente, pôde-se observar um fenômeno intrigante na indústria farmacêutica internacional. Os avanços tecnológicos, notadamente nas áreas de engenharia genética e biotecnologia, permitiram nos últimos anos o surgimento de medicamentos contra o câncer cuja eficácia atinge índices surpreendentes. Dados divulgados na 41a. conferência anual da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO), uma das entidades médicas mais respeitadas mundialmente, atestam que medicamentos como Erbitux e Avastin podem aumentar as chances de sobrevivência de pacientes com câncer colo-retal metastático em até 900% se comparado ao índice de sobrevivência com o tratamento quimioterápico convencional. Esses resultados clínicos, somados ao baixo número de efeitos colaterais da nova geração de quimioterápicos, sugere o advento de uma verdadeira revolução na oncologia, que cada dia mais vislumbra a cura dos mais diversos tipos de neoplasias como realidade alcancável. A desvantagem, no entanto, fica por conta do altíssimo custo desses medicamentos. O tratamento com Erbitux, por exemplo, pode chegar à cifra de 30.000 reais mensais, dependendo da quantidade administrada, valor que está muito além da capacidade econômica da maioria da população, até mesmo em países desenvolvidos.
Diante desses recentes avanços na indústria farmacêutica, é cada vez mais comum médicos oncologistas brasileiros, da rede pública e privada de saúde, receitarem o Erbitux e o Avastin para pacientes com câncer metastático. A estes, no entanto, está sendo negada sistematicamente, pelo Estado, o fornecimento dos referidos fármacos, sob os mais diversos subterfúgios e argumentos. O SUS – Sistema Único de Saúde – recusa-se a incorporar muitos desses medicamentos ao seu protocolo, sem justificativa plausível para isso. Da mesma forma, há suspeitas, na classe médica, de que os órgãos de vigilância sanitária competentes para a aprovação do uso de medicamentos no Brasil estão atrasando de propósito a aprovação de drogas caras como o Erbitux. E é freqüente a pressão sofrida pelos médicos de hospitais públicos para não receitarem o Erbitux e o Avastin a seus pacientes, ainda que sejam essas as únicas formas de tratamento possíveis para o caso, o que faz restar, para o paciente, apenas a via judicial para a garantia de seu direito à saúde.
Assim ocorreu com a paciente Y.P.P.. Portadora de neoplasia malígna de colon (câncer colo-retal), metatástico para fígado, pulmão e cérebro, foi submetida a intervenção cirúrgica e a vários tipos de quimioterapias, feito uso de diversos medicamentos especificados por relatório de seu médico. Em razão da resposta insatisfatória de seu organismo aos tratamentos com quimioterapia até então realizados, foi receitada a droga Erbitux, para administração por tempo indeterminado. Não dispondo de condições financeiras para adquirí-la, dirigiu-se à farmácia da rede pública de Saúde solicitando o medicamento, ocasião em que foi informada verbalmente de que o mesmo não estava disponível. Inconformada, impetrou mandado de segurança visando ao fornecimento do medicamento pelo Poder Público. Em primeira instância, teve seu pedido de liminar negado, sob a justificativa de que o Erbitux não possui registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Em sede de recurso, teve seu direito ao adequado tratamento de sua doença devidamente garantido por antecipação de tutela concedida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que derrubou a decisão do juiz de primeiro grau.
Em que pese a corajosa e correta decisão do TJ-SP, espelhada em inúmeros outros casos de liminares concedidas por juízes e desembargadores de São Paulo, e de praticamente todos os Estados do Brasil, percebe-se muitas vezes nos órgãos e representantes do Poder Judiciário, em casos análogos, um receio compreensível, a experiência de um certo dilema, que, em si, denota a noção da enorme responsabilidade que detêm os magistrados num país tão contraditório como o nosso.
O dilema vivido diariamente por nossos juízes é, com certeza, muito relevante e complexo. De um lado, está absolutamente claro na legislação brasileira e solidamente consolidado na jurisprudência o direito líquído e certo dos cidadãos ao fornecimeto de medicamentos por parte do Estado, pois já há muitos anos os tribunais reconhecem esse direito por força das previsões constitucionais do direito à saúde e da explícita previsão de fornecimento de medicamentos pelo SUS contida na lei 8080/90. De outro lado, nossos magistrados observam, além do surgimento de remédios cada vez mais caros, um crescimento da conscientização dos cidadãos – importando no aumento enorme das demandas judiciais para forçar o Poder Executivo a fornecer as drogas. Ao mesmo tempo – e aí está aspecto mais importante da questão – as doutrinas econômicas atrasadas que imperam há mais de uma década na gestão pública brasileira fazem por restringir cada dia mais as verbas orçamentárias, sacrificando-se cada vez mais os recursos destinados à Educação e à Saúde. A questão que se coloca é, portanto, bastante concreta: como exigir o fornecimento de remédios caros como o Erbitux para um número crescente de pessoas sendo que os recursos financeiros dos entes estatais são limitados? Constitui uma ingerência do Poder Judiciário obrigar o Executivo a comprar drogas caras sem a devida previsão orçamentária? E, ainda que admissível do ponto de vista político-filosófico, tal atuação do Judiciário seria exequível do ponto de vista econômico?
Apesar da seriedade da preocupação exposta e da tentação intelectual de concluir como “programáticas” as normas sobre Saúde da legislação brasileira, na medida em que um simples cálculo aritmético sugere que obrigar o Executivo a fornecer medicamentos caros para toda a população poderia ‘quebrar” o Estado, de modo algum deve-se optar por essa tese.
Em primeiro lugar, há que se considerar que os altos custos das drogas de última geração se devem muito mais ao elevado investimento durante anos de pesquisa do que aos insumos e mão de obra usados para a sua produção direta. Como toda indústria de alta tecnologia, a farmacêutica precisa embutir no produto final o custo de todo o processo de elaboração do produto, desde a pesquisa mais remota. Assim, é natural que, com o passar do tempo, o preço dos medicamentos para câncer caiam progressivamente, a exemplo do que acontece com os equipamentos de informática, já que cada vez mais estariam compensados os custos de pesquisa na criação da fórmula.
Outro aspecto a se considerar é o fato de que, ao se aumentar o mercado consumidor dessas caríssimas drogas (hoje restrito a um segmento social muito pequeno), com o fornecimento gratuito pelo Estado, a tendência passa a ser também a de baixa geral de preços, pois os ganhos em escala compensariam mais rapidamente os custos de produção.
É mister salientar, ademais, que ainda que nenhuma dessas hipóteses fosse verdadeira, o Estado brasileiro possui “válvulas de escape” institucionalizadas para lidar com situações como essas. Exemplo maior disso é a previsão de quebra legal de patente em caso de interesse público (artigo 71 da lei 9279/96). Ou seja, no caso de o interesse público (nesse caso a solvência do Estado) estar em jogo, dispõe o Poder Executivo Federal de uma previsão legal para quebrar a patente dos “super medicamentos”. Não que essa quebra deva ser sempre realizada, mas a sua possibilidade institucional pode e deve ser largamente utilizada como fator de negociação de preço entre o governo e indústria farmacêutica detentora dos direitos de fabricação.
Por último, mas não menos importante, a imposição de obrigações como essas, “aparentemente inexequíveis”, ao Poder Executivo, estimula em muito o aumento da qualidade da administração dos recursos públicos. Assim, sob pressão de um imperativo judicial e legal, o Executivo tem sempre a prerrogativa de realocar suas verbas por prioridade. Por exemplo, diante do aumento “forçado” do gasto com saúde, pode optar por diminuir gastos com publicidade ou diminuir a quantidade de cargos de confiança sem concurso, dois itens do orçamento que, sabidamente, pouco retorno dão à população em geral. Ou ainda, principalmente no caso do governo federal, evoluir para uma gestão mais responsável de sua dívida interna, com o arbitramento mais criterioso das taxas de juros pagas em função dos títulos públicos pelo tesouro nacional.
Tais medidas, como quebra de patentes, negociação de preços e melhora da gestão pública, porém, jamais serão realizadas de livre e espontânea vontade dos governos. É fundamental, assim, que uma força autônoma externa, como os meios de comunicação, a opinião pública e principalmente o Judiciário criem, propositalmente, um “mal-estar” institucional, um conflito de interesses imediatos como o que se vê todas as vezes em que um juiz concede uma liminar para o fornecimento do Erbitux, do Avastin e de outros remédios de alto custo. Se assim não tivessem entendido os tribunais até agora, é possível que a AIDS fosse uma doença muito mais presente na nossa sociedade do que é hoje. Felizmente, graças à atuação competente do Poder Judiciário no início da década de 90, garantindo os direitos os pacientes (os coquetéis anti-HIV também eram muito caros), pudemos presenciar uma série de acontecimentos benéficos, culminando com a flexibilização das patentes de alguns medicamentos e a negociação de preços de outros por parte do Ministério da Saúde.
Tripartição na visão clássica ou equilíbrio de poderes?
A ordem do Poder Judiciário que obriga o Estado a conceder um medicamento caro ou importado suscita uma discussão de natureza teórica. De acordo com a clássica concepção de tripartição de poderes, cada um dos três poderes, independentes e harmônicos entre si, teria uma função específica e predominante, não cabendo a outro interferir em seara alheia. Assim como cabe ao Legislativo legislar, deve o Poder Judiciário apenas julgar, sempre aplicando as leis ao caso concreto, e o Executivo formular e executar as chamadas políticas públicas.
O planejamento da política estatal de saúde, com base nos recursos aprovados na lei orçamentária votada pelo Legislativo, estaria no rol de prerrogativas do Poder Executivo. Nenhum outro órgão poderia interferir na decisão política de escolha de prioridades dos programas públicos. O Judiciário, imparcial por concepção, não deveria interferir em questões de cunho político. Ficaria reservado um papel imparcial e predominantemente técnico, como mero aplicador da lei, para os magistrados. Decisões que se aproximem do terreno político poderiam, segundo essa concepção antiga, arruinar a tripartição de poderes.
A idéia de uma divisão dos poderes está, no entanto, ligada à noção de equilíbrio entre eles. Como reação ao arbítrio do poder absoluto, contra o abuso do poder contra minorias ou até maiorias, floresce a idéia iluminista de uma nova organização do poder buscando não concentrá-lo em determinada pessoa, órgão ou grupo. Desde então, os mecanismos se desenvolvem no sentido de equilibrar o exercício do poder, evitando que o abuso ou desvio ocorra em função da ausência de controle e fiscalização dos atos de quem toma decisões políticas. O princípio da separação de poderes, com um sistema de freios e contrapesos, tende a cumprir o papel de sustentáculo da democracia e da convivência ordenada entre os diversos grupos na sociedade política.
Não cabe mais, se é que algum dia coube, pensar na repartição de poderes como mera divisão burocrática de funções no organograma do Estado. Sua função é muito mais nobre e fundamental para a preservação do governo democrático e dos direitos e garantias fundamentais. Quando um poder anda mal, como no mencionado caso das escolhas feitas nas políticas públicas em detrimento de direitos básicos dos cidadãos, deve outro agir de forma a sanar o mais prontamente possível a omissão.
Lesão a direito sanada e o mais prontamente possível. Temos, então, dois pontos importantes preconizados pelas doutrinas do processo de massa e da efetividade da prestação jurisdicional. Não só o Poder Judiciário deve garantir ao maior número possível de pessoas o bem da vida a que têm direito, não podendo excluir de apreciação lesão a direito (Constituição Federal, art. 5°, inciso XXXV), como deve garanti-lo em tempo hábil de ser fruído (CF, art. 5°, inciso LXXVIII). Assim sendo, o mandado de segurança é o meio correto e preciso para sanar a omissão do poder público nos casos mencionados.
É importante destacar o papel ativo e importante do Judiciário nas decisões mencionadas. Quando um juiz ordena que seja entregue um medicamento, não há qualquer quebra no princípio da tripartição de poderes. Muito pelo contrário, como dissemos, pode-se afirmar que há a manifestação mesma do equilíbrio de poderes. Frente a uma omissão evidente, desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, ofensa aos direitos à saúde e à vida, ou seja, quando um poder vai mal, o magistrado age prontamente para corrigir o erro e garantir a tutela dos direitos de um cidadão.
O Estado, como acima mencionado, conta com mecanismos à sua disposição para arcar com os custos econômicos e políticos para garantir à população o direito fundamental à saúde. E o Poder Judiciário, atuando de forma a suprir lesões a direitos fundamentais por parte do Executivo, mostra claramente que consegue ser fiel à exigência de imparcialidade sem ceder às comodidades e tentações da indiferença.
Interessante artigo, parabéns.
É um absurdo o que o governo faz, gasta dinheiro com propaganda mas não quer pagar remédios e salvar vidas.