Escrito por Rafael Gandara D’Amico
Há quase dois anos, uma curiosa proposta de um deputado federal reconhecido como de esquerda foi manchete na imprensa brasileira (Projeto pode tirar até 45% de terra indígena em Roraima, Folha Online, 12/04/2004). Conforme noticiado, o então deputado Lindberg Farias (PT-RJ), relator da comissão externa criada pela Câmara Federal com o intuito de avaliar a demarcação das terras indígenas da reserva Raposa Serra do Sol (RO), sugeriu que fosse criada uma faixa de proteção de 15 km, ao longo das fronteiras do Brasil com a Venezuela e a Guiana, com um total estimado em cerca de 506 km de extensão.
Há quase dois anos, uma curiosa proposta de um deputado federal reconhecido como de esquerda foi manchete na imprensa brasileira (Projeto pode tirar até 45% de terra indígena em Roraima, Folha Online, 12/04/2004). Conforme noticiado, o então deputado Lindberg Farias (PT-RJ), relator da comissão externa criada pela Câmara Federal com o intuito de avaliar a demarcação das terras indígenas da reserva Raposa Serra do Sol (RO), sugeriu que fosse criada uma faixa de proteção de 15 km, ao longo das fronteiras do Brasil com a Venezuela e a Guiana, com um total estimado em cerca de 506 km de extensão.
Além disso, de acordo com a proposta do deputado, na mencionada faixa de segurança deveriam ser criados alguns pólos urbanos e produtivos, com não-índios, que teriam de conviver com as malocas dos índios. De acordo com o jornalista Rubens Valente, autor da matéria no Folha Online, “a razão para a calha, segundo o deputado, é ‘a segurança nacional’”. Em nome da mencionada segurança nacional, conceito tão familiar quando se lembra da política brasileira de outrora, o projeto buscaria evitar o surgimento de uma possível “nação yanomami” próxima às áreas de fronteira que poderia comprometer a soberania do país.
Apesar do destaque dado pelos meios de comunicação, cremos que a proposta mencionada merece ainda alguma discussão complementar, principalmente se levarmos em conta o quanto é reveladora de uma certa ideologia (e conseqüente prática) que sempre está presente quando se trata da aplicação e efetivação de direitos e garantias de grupos à margem do status pleno de cidadania no Brasil. Não obstante o seu reconhecimento por meio da positivação, tanto na Constituição Federal quanto em textos legais infraconstitucionais, o arranjo de forças políticas que rege a política nacional sempre encontra meios de evitar que se concretizem os direitos e garantias mencionados.
No que toca ao direito dos índios, a Constituição de 1988 é bastante clara:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º – As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”
O texto constitucional é bastante claro. Os índios têm sua organização social e cultural reconhecidas e por tal pressuposto deve se pautar a atuação estatal, especialmente os programas e projetos que lidam com a questão indígena. Buscar substituir as comunidades indígenas por supostos “pólos produtivos” parece, antes de tudo, uma ação intolerante com a diversidade de culturas e modos de organização social que devem, encontrando abrigo nos direitos e garantias presentes na Carta Constitucional, coexistir no Brasil. Afastar as comunidades indígenas das terras tradicionalmente ocupadas e habitadas por eles, necessárias a sua reprodução física e cultural, não parece o tipo de ação mais condizente com os mandamentos e o espírito do texto constitucional.
Além disso, parece interessante que, não obstante a citação de um conceito de segurança nacional semelhante àquele tão caro aos homens públicos de nosso último período de lapso democrático, esteja presente o argumento da produtividade. Os últimos tempos da política nacional têm sido marcados pela intensificação da atuação dos movimentos que defendem a reforma agrária. Os grupos de esquerda, ou os que assim se imaginam, costumam se posicionar ao lado daqueles que a reivindicam. Uma das objeções mais presentes no discurso dos que fazem oposição aos movimentos que, com seus erros e acertos, lançam em pauta a questão agrária é também o da produtividade.
De acordo com a versão dos grupos denominados “ruralistas”, a reforma agrária seria um retrocesso, uma vez que os pequenos produtores dela beneficiários não conseguiriam alcançar o mesmo nível de produtividade das grandes propriedades. Não há qualquer preocupação com a autonomia das comunidades e a sustentação de modos diversos de organização social. Quando surge a discussão, o contra-argumento sempre presente é o da produtividade.
O mesmo parece acontecer na proposta do relator da comissão da Câmara. Em nome de um conceito um tanto quanto arcaico de segurança nacional, buscando argumentos como o da produtividade, temos uma ameaça ao reconhecimento das diversidades de modo de vida e organização social reconhecidos pela Constituição Federal. É preciso que a questão indígena seja pensada sempre levando em conta a defesa da dignidade da pessoa humana, fundamento da república Federativa do Brasil, a preservação da cultura e o direito a terra, reconhecidos no citado art. 231 e seus parágrafos.
Pautar a discussão da questão indígena e formular alternativas por razões de estado alheias ao bem-estar das populações, bem caras ao velho conceito de segurança nacional, e utilizando paradigmas como um certo fetichismo produtivista, típico legado da esquerda da cortina de ferro, é uma atitude que não vai render bons frutos para a política indigenista do Estado brasileiro. A importância desmedida dada à produtividade fez com que os dirigentes soviéticos massacrassem e perseguissem milhões de agricultores. Trocar comunidades de índios por pólos produtivos, mesmo que em um contexto totalmente diferente, pode ser uma alternativa legatária do mesmo tipo de paradigma. Talvez o deslocamento das populações seria como que a criação de um gulag para os indígenas nacionais. Alguns perguntariam se é uma experiência nova. Não, basta lembrar do que fizeram aos índios Panará na década de 70 do século passado.
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